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Date de création : 09.09.2012
Dernière mise à jour : 12.01.2025
313 articles


NINA OU A VIDA DO LADO DE LÁ - Retratos passados

Publié le 15/09/2012 à 23:34 par aubadedelavie
NINA OU A VIDA DO LADO DE LÁ  -  Retratos passados

 

 

CRÓNICAS SEM PÉS NEM CABEÇA

RETRATOS PASSADOS


Nina ou vida do lado de lá


- Acorda, Nina. Vamos, acorda ! São horas.

Ouço a voz da mãe sussurrando, mas não sei se é verdade ou se ainda estou a sonhar. O hálito quente no pescoço e a insistência das palavras acabam por fazer-me emergir do profundo, misterioso abismo do meu sono. Escancaro os olhos na penumbra da madrugada.

«Ainda é de noite, mãe!»

«Se o teu irmão não tivesse desmanchado o relógio podíamos saber as horas, assim...» queixa-se a mãe de mau humor. «Já são horas e mais que horas, vamos veste-te depressa».

Levanto-me vacilante ainda com os olhos cheios de sono e com a imagens do pesadelo, sempre o mesmo que me visita de vez em quando. «Não quero ir, não quero ir...»

«Não há querer nem meio querer. Quem não trabuca não manduca, foi o que me ensinaram!»

Já sabia. Não vale a pena insistir, a mãe vai ficar arreliada e vamos ter que a ouvir zurzir o dia inteiro. Com sete anos, já tive tempo para aprender a cantilena. Começo a vestir-me devagar para fazer durar o tempo, isto é, enfiar a bata e calçar os tamanquinhos.

Entretanto, vou olhando a sala onde se encontra a cama de casal onde durmo com a mãe, sendo ambas confortadas pelo calor comum no inverno. Ainda bem, agora ocupo esse lugar desde a partida do pai emigrado.

Dizem que as casas são o reflexo das pessoas que nelas habitam, pois aquela velha casa era o espelho da desordem familiar. Uma mesa velha coberta com uma toalha branca rendilhada que outrora fora alvíssima, mas que agora arbora as nódoas do tempo, e atravancada com um montão de objectos diversos: lenços, cartas, vasos de flores partidos, e fotografias a esmo.

Um fio de ferro atravessa a sala. Aí estão penduradas ou simplesmente pousadas as escassas roupas do domingo protegidas por um velho lençol amarelado. Nina costuma admirar, sonhadora, o vestido azul como se se tratasse duma preciosidade numa montra à qual terá acesso num dia de festa. A roupa diária fica pousada numa cadeira trôpega no canto da sala. A miúda não conhece outro conforto, portanto, não são esses promenores que a incomodam.

Com poucos móveis se podia dar um arranjo, mas não ali. Tudo estava aos montes, mesmo a louça que ficava na pia duma refeição para a outra, esperando ser levada para a outra pia: a dos suínos. Na aldeia nada se perdia.

Em cima da mesa, panelas com os restos, fechadas com as devidas tampas. Só a lareira estava vazia, dando lugar às velhas panelas de ferro, trempe, tenazes e cinzas ou ao lume aceso. Foi ali que Nina caiu nas brasas vivas aos cincos anos, saindo quase ilesa por milagre.

A mãe volta a chamar. Nina deixa-se escorregar da cama e pouco falta para se vestir, é hábito dormir com a roupa interior: há muito que se foram os pijamas considerados como mimos de burgueses.

A miúda torce-se toda para abotoar o bibe nas costas. Ainda na penumbra da madrugada, distingue a porta da rua e a janela do mesmo lado, cujas folhas fechadas escondem o vidro quebrado com uma pedrada.

Heréticos do inferno, disse o garoto – e zás! Atirou uma pedrada que deixou o vidro estilhaçado. E assim ficou.

Nina contorna a mesa e desce o degrau que dá para o pequeno corredor contíguo à alcova onde dorme o irmão, entra na cozinha e senta-se no escabelo de madeira diante da mesa. A mãe mergulha numa bacia de água quente a louça suja da véspera, preparando-a para os animais.

Nessa manhã fria de fevereiro, a cozinha ainda parece mais lúgubre, apesar das brasas que iluminam a lareira, debaixo da imponente chaminé. As paredes têm sido pintadas pelo fumo que as tem escurecido. A bruma fumarenta sobe pelas prateleiras do velho louceiro azulado encastrado na parede, até se escapar pelas telhas.

Umas mais, outras menos, todas as casas dos agricultores daquela aldeia se pareciam: escuras, sujas e lúgubres. Algumas escapavam a essa regra, porque os donos tinham emigrado e trazido algumas melhoras; outras com vestígios de abandono. A casa da Nina estava entre as últimas. E não servia de nada a mãe lastimar-se pelos cantos. A vida assim tinha decidido!

O último pesadelo dá dores de cabeça à garotinha :

«Estava na seara semeada de fresco numa madrugada fria. As minhas mãos estavam vermelhas e geladas, paralisadas. Soprava para as aquecer. Mãe, estava na terra de Breiga semeada de trigo. Estava frio e escuro, era de madrugada e tinha acendido umas brasas para aquecer as mãos. De vez em quando girava nos regos e agitava os braços gritando “hééé...” : pássaros danados, queriam comer as sementes, e quanto mais gritava, mais vinham, voando, vorazes e medonhos. Então eu ia ficando mole, mole, deixei de sentir o frio, emudeci, mas continuava a ver e a ouvir, com os braços levantados e hirtos. Desvirei os olhos e vi que estava transformada em espantalho com os braços ao alto, roupa rota e corpo de palha, queria gritar, mas a voz não saía, só se ouviam os pássaros a piar, troçando da minha aflição. Acordei a chorar e gritando : não, não.... Ainda sinto aqui no pescoço o lenço que apertava o espantalho».

Nina bem vê que a mãe nao escuta nada do que diz. «Ouvi-te chorar esta noite, tiveste um mau sonho?». Nina volta a contar e a mãe acrescenta : «Isso não é nada, tens sete anos e meio, até já sabes ler e fazer contas, estás a ficar uma mulher, filha, tens que começar a aprender a trabalhar como todos e como eu quando era da tua idade. Não quero que faltes à escola, mas o nosso destino é o trabalho da terra, já assim foram os nossos antepassados: lavradores respeitados e honestos. Anda, bebe a tua malga de leite e come a broa, o sol vai despontar, temos que ir.»

Nina molha a côdea no leite misturado com um pouco de cevada e termina o pequeno almoço. Limpa os lábios com as costas da mão. Gosta muito do leite da vaca que a viu nascer: um néctar saboroso e cremoso. Vai à bacia de esmalte azul e passa a água na cara; o contato com a água gelada despertaria um moribundo!

Ao saírem, sente a aragem frígida no corpo como uma chibatada. Só a vaca que o irmão atrelou à carroça parece contente, pois sabe que vai pastar a erva fresca na pradaria. O estrume do pátio e dos currais em frente à cozinha ainda fede mais de madrugada.

Aquele cheirete a estrume entra por todos os poros, parece que todos os camponeses trazem continuamnete aquele cheiro colado ao corpo, tanto pelo trato dos animais como nos campos. Na entrada da casa está o alpendre onde se guardam alfaias, a velha bicicleta e molhos de palha para os animais, à mistura com cacos de telhas e de cântaros e uma pipa desfeita com as aduanas espalhadas como intestinos dum ser de madeira desfeito. No alpendre, Nina costuma distrair-se apanhando moscas que põe nas grandes teias espreitando a refeição da aranha.A pesada porta da rua parece gigantesca. Todas as crianças se sentem impotentes para a abrirem de par em par.

Um arrepio atravessa o corpo da miúda. Mistura de frio e do sentimento antecipado de solidão que vai enfrentar. Sopra nos dedos e esconde-se no xale de lã preta. Hoje, vai ser ela o espantalho na terra das Poças: vai andar toda a manhã em volta da terra semeada de fresco, pisando os regos ainda húmidos, vai fazer barulho batendo com um pau no fundo duma panela rota para afastar os pássaros vorazes e grita: ehehehe... pássaro... E eles grasnam com desprezo.


Se as minhas colegas da escola me vêem vai ser uma algazarra na segunda-feira no recreio: olha o espantalho, olha o espantalho!

E a viva aragem que lhe castiga as faces tem um amargo gosto de lágrimas.